"MAIS ESPERANÇA NOS MEUS PASSOS
DO QUE TRISTEZA NOS MEUS OMBROS."
CORA CORALINA
POTÊNCIA AFRO:
empreendedorismo, identidade e transformação coletiva
A capital mais negra do Brasil é também terra de potencialidades. Muitas delas carregadas de saberes de mulheres pretas e homens pretos que fazem de Salvador, na Bahia, um destino turístico único. São cerca de 50 km de praias, uma baia que é de todos os Santos e uma infinidade de atrações culturais, históricas e gastronômicas marcadas por essa presença atuante, viva e criativa. Com 82% de sua população negra, a capital baiana é essencialmente afro. E é afro também a força que dá vida a toda essa cadeia turística sedimentada por uma ancestralidade que compõe o retrato do cotidiano da cidade. Apesar disso, quem historicamente se beneficia economicamente dessa cultura afro do turismo em Salvador não é a população negra.
E é para ajudar a mudar essa realidade que o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) vem apoiando, desde 2017, o Programa Nacional de Desenvolvimento do Turismo em Salvador (Prodetur). Ele é executado pela Secretaria de Cultura e Turismo (Secult) do município e tem como uma das principais propostas aumentar a renda e o emprego formal na cadeia do turismo, com foco na cultura local e nos afrodescendentes.
Judith Morrison, Especialista de Gênero e Diversidade do BID, destaca que um dos objetivos específicos do programa é ter a garantia de que a renda gerada pelo turismo chegue realmente às pessoas que o promovem. O que, no caso de Salvador, são as pessoas afrodescendentes, muitas vezes não valorizadas. E isso, aponta, é um compromisso de chegar a um lugar diferente do já proposto por projetos de turismo do passado.
“Como banco, melhorar vidas durante um processo de turismo tem sido bastante único. E tem sido também uma evidência da importância de fazer um desenho em colaboração com as próprias pessoas locais que moram nesses lugares”, ressalta.
"As pessoas negras que participavam diretamente do turismo, não eram protagonistas econômicas desse turismo."
Ivete Sacramento
Secretária Municipal de Reparação
Afroturismo e Reparação
Vai nesse sentido a criação, em 2019, do Plano de Ação do Turismo Étnico-Afro, realizado pela Secretaria Municipal de Cultura e Turismo e pela Secretaria Municipal da Reparação (Semur), por meio do Prodetur Salvador e com financiamento do BID. Trata-se de uma política pública de reparação que visa diminuir a desigualdade entre a população afrodescendente da cidade e fortalecer a preservação da cultura afro local. Foram R$ 15 milhões para a implementação do Plano de Desenvolvimento do Turismo Afro, que se divide em quatro eixos: Ecossistema e Negócios (AfroBiz Salvador); Capacitação de Renda (AfroEstima Salvador); Produtos Turísticos (Rolê Afro, Salvador Capital Afro, Censo das Baianas e Fortalecimento do ofício das Baianas); RP/Imprensa e ações integradas com outras secretarias.
Um dos grandes diferenciais do desenvolvimento do Afroturismo em Salvador é o fato de que ele foi construído a partir da escuta de 658 atores da cadeia do turismo local. “Tudo de forma participativa, com atores negros envolvidos na área. O que a gente precisa é justamente isso, oportunizar, abrir portas e dar chance para o crescimento dessas pessoas”, frisa a Secretária de Reparação de Salvador, Ivete Sacramento. Com a autoridade de quem foi a primeira reitora negra do Brasil e pioneira na implantação das cotas sociorraciais em universidades, ela fala da necessidade de proporcionar ações afirmativas concretas e que viabilizem as potencialidades negras da capital baiana.
A Secretária Ivete comenta ainda que toda imagem da cidade é respaldada na cultura negra e que os afroempreendedores precisam ter, também, protagonismo econômico.
Danielle Sales
Empreendedora
Rede de afroempreendedores
Pensando nisso, em 2021 foi criado o Afrobiz, uma plataforma online de marketplace que conecta a indústria criativa afro de Salvador a consumidores e investidores. Ela funciona como uma vitrine de negócios onde afroempreendedores podem expor seus produtos e serviços. Tudo para articular esses atores enquanto cadeia de valor, aumentando sua relevância no negócio do Turismo, e expor essa cadeia a oportunidades comerciais, contribuindo para o maior protagonismo econômico de afroempreendedores na atividade.
A inscrição na plataforma é contínua. Pessoa física ou jurídica da cadeia direta e indireta do Turismo Afro, a exemplo de baianas, serviços de gastronomia, terreiros, guias, operadores e agências de Turismo, artistas, capoeiristas e publicitários podem participar. Já são 1919 cadastros nos mais diversos segmentos. A expectativa é que em abril de 2023 esse número chegue a 2.500.
Rodadas de negócio - na esteira de ações do Prodetur, foram realizadas quatro rodadas de negócios do AfroBiz Salvador: duas nacionais e duas internacionais, somando cerca de 3,8 milhões de reais em expectativas de negócios. Além disso, 40 afroempreendedores foram encaminhados para o PEIEX – Programa de Qualificação para Exportação do Instituto Euvaldo Lodi (IEL) – Bahia.
É o caso de Danielle Sales, mulher preta, empreendedora de 42 anos, que trabalha com um dos principais símbolos gastronômicos de Salvador.
O acarajé
Esse bolinho de feijão fradinho frito no dendê fervente é mais do que alimento para o corpo e para o espírito. Ele nutre uma história de longa data. Registros do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) revelam que a receita teve origem no Golfo do Benim, na África Ocidental, e chegou aqui com a vinda de escravos dessa região a partir do século XVI.
O tempo passou e as baianas com seus tabuleiros passaram a fazer parte do desenho de Salvador. Em 2005, as baianas de acarajé se tornaram Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. Mais do que meio de sustento, a lida com o acarajé é uma forma de habitar o mundo. Pertencer.
Tem dendê!
Neta de Dona Helena Sotero, Daniele é a quarta geração de baianas de acarajé. São histórias tecidas por um saber ancestral, que veio passando de mãe para filha. “Eu digo que eu moro num seio familiar e afetivo. Moro com minha mãe e minha avó, uma senhora de 90 anos, que teve 18 filhos e hoje tem 12 filhos vivos”.
Ao todo, são 9 mulheres, 5 delas baianas de acarajé com tabuleiros espalhados dentro de Salvador. Vidas atravessadas por um ofício que foi ensinado à Dona Helena pela mãe, bisavó de Danielle. E foi com esse saber sagrado que essa mulher criou sua família.
Danielle é graduada em Turismo e cursou até o sexto período de Direito. Estudou para concursos de Auditor Fiscal e Polícia Federal. Em 2018, deu início à Tem Dendê Gourmet. Ela conta que não sabia cozinhar absolutamente nada. Depois de pedir para a mãe, Dona Maria Célia, a ensiná-la a fazer abará, iguaria também presente no tabuleiro das baianas, não parou mais. Hoje produz e comercializa também acarajé, vatapá e caruru nas versões tradicional e vegana, siri catado e abará vegano, tradicional e recheado. Tem também bolinho de estudante, doce típico de Salvador à base de tapioca.
Entre os diferenciais da Tem Dendê é que todos os produtos são congelados. Tudo chega pronto e muito bem embalado. Basta aquecer. Aroma, textura e sabor são preservados para a experiência deliciosa de saborear o dendê da Bahia esteja onde estiver, na hora que quiser. E isso vale para quem está na capital baiana, no interior, fora do estado e, em breve, fora do Brasil.
Da cozinha de casa para o mundo
A produção da Tem Dendê começou dentro do apartamento onde Danielle vive com a mãe e a avó. Com o tempo, ele ficou pequeno para tanta demanda e ela passou a contar com um novo espaço e uma cozinha semi-industrial. “Eu saí da minha residência vendendo aproximadamente 30 pacotinhos, para vender hoje mil peças em um mês”, revela. Os freezers cheios comprovam e refletem a preocupação da empreendedora com a qualidade dos produtos e do atendimento, nos mínimos detalhes.
Contribui para isso a constante busca por aprimoramento. Danielle conta que ficou sabendo pela internet dos cursos de capacitação promovidos pelo Plano de Desenvolvimento do Turismo Afro e resolveu se inscrever. De aprendizado em aprendizado, vieram as rodadas de negócio do Afrobiz, onde apresentou a Tem Dendê e seus produtos, com direito à degustação. “Foi a partir dessa rede de negócios que eu comecei a analisar que a gente podia ir além do que eu já fazia”, lembra.
E é o que está acontecendo. Depois de participar de feiras e interagir com compradores internacionais, Danielle já está em negociação para exportar seus produtos, inicialmente, para Portugal e França. Sobre a importância dessa troca, destaca a oportunidade de “aprender enquanto empresária como planejar o produto para ir para fora. ”
Quanto à importância de conseguir expor seus produtos a compradores numa feira como a promovida pelo Prodetur, diz: “em que momento eu, enquanto mulher preta, vendendo um quitute de acarajé, ia conseguir ter um encontro com uma empresa, uma não, foram várias empresas, né? Exportar era um sonho. ”
Simone Costa
Especialista de Turismo (Prodetur)
Protagonismo e renda
Simone Costa, especialista de Turismo do Prodetur, lembra que são muitas as vidas transformadas pelas ações estruturantes do programa: “a gente consegue perceber como esses afroempreendedores já começaram a se posicionar de uma forma diferente. E isso faz com eles ganhem mais confiança e autoestima, desenvolvendo melhor os seus negócios, trazendo lucro e aumento de renda. ”
O fortalecimento da cadeia de valor com integração da comunidade tem sido fundamental. E os resultados, conta, são percebidos na prática: “trancistas falam em seus depoimentos que aumentaram em 30% o seu rendimento” após fazerem parte das ações do programa.
A turismóloga também destaca a criação recente do Comitê do Afroturismo para que esse segmento tenha voz no Conselho Municipal de Turismo. O Comitê faz parte do Salvador Capital Afro, movimento de fortalecimento da cultura afro de Salvador, também desenvolvido no âmbito do Prodetur e financiado pelo BID. A ideia é firmar Salvador como polo criativo e artístico do Brasil na rota de investidores e players nacionais e internacionais.
E isso está sendo feito com mais participação social, unindo turismo, cultura, reparação e identidade. Uma identidade que só Salvador tem: “aqui, em qualquer lugar, você vai ter uma experiência afrocentrada. Essas pessoas agora estão no palco, elas são responsáveis pela criação e manutenção dessa cidade enquanto um destino cultural extremamente interessante e identitário”, celebra Simone.